Há quem diga que encontrar um propósito é o motor da vida. Livros de autoajuda, palestras motivacionais, gurus corporativos — todos parecem concordar que sem uma razão clara para existir, a existência se torna um fardo. Mas quem estabeleceu essa necessidade de ter um objetivo único, coerente, elevado, para justificar o simples fato de estar vivo? Em um mundo que ruge com contradições, que muda de rota a cada segundo, por que seria razoável exigir de si mesmo uma linha reta, estável e permanente?
O imperativo do propósito se alimenta de uma promessa silenciosa: a de que, se houver um sentido bem definido, a angústia se tornará suportável, a dor terá explicação, e cada manhã ganhará a leveza de um destino garantido. É uma oferta tentadora, mas raramente entregue. Quem vive de perto a experiência do sofrimento sabe que o caos não se curva ao projeto pessoal, que a vida não se ajusta à narrativa idealizada.
Nietzsche, no fim do século XIX, já alertava para o perigo de construir ídolos interiores — conceitos inquestionáveis aos quais se atribui valor absoluto. Entre esses ídolos, o propósito pode ser um dos mais sedutores: transforma-se em sentido último, mas também em prisão. Quantos não adoecem por se sentirem incapazes de encontrar “sua missão”? Quantos não se paralisam pela ansiedade de descobrir “o que vieram fazer aqui”?
Ao observar as práticas clínicas contemporâneas, percebe-se que a exigência de sentido único é, muitas vezes, mais fonte de sofrimento do que de alívio. Pessoas se culpam por não terem clareza, sentem-se fracassadas por não conseguirem alinhar cada passo a uma visão de futuro fixa. Como se houvesse uma central cósmica cobrando coerência entre a biografia e um roteiro invisível.
A psicanálise lembra que o sujeito é essencialmente dividido, múltiplo, contraditório. Nenhum desejo surge puro; toda motivação carrega ruídos, ambivalências, hesitações. E o mundo, marcado por guerras, colapsos ambientais, crises políticas e culturais, insiste em desmentir qualquer plano de estabilidade. Por que então fazer do propósito um mandamento?
Talvez a pergunta mais honesta não seja “qual é o meu propósito?”, mas “como sustentar minha experiência de estar vivo mesmo sem certezas?”. Há quem encontre sentido em microgestos: cultivar plantas, ajudar um amigo, fazer um trabalho que não ambiciona mudar o mundo, mas toca pequenas vidas. Há quem descubra alegria em transitar entre interesses diferentes, reinventando a si mesmo sem precisar de um rótulo permanente.
É possível viver sem propósito? Não apenas é possível — pode ser libertador. Isso não significa abandonar valores ou viver sem direção, mas aceitar que sentido e propósito são construções temporárias, provisórias, sujeitas ao tempo, às contingências e ao desejo que nos atravessa. Não existe tribunal que condene quem muda de ideia, quem se permite viver capítulos incoerentes, quem faz do improviso uma filosofia.
Como sustentar a vida sem um “propósito” fixo:
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