A culpa cristã ainda estrutura a neurose coletiva do Ocidente
A psicanálise não oferece absolvição. Mas oferece, talvez, o direito de perguntar: culpado de quê? Desejar não é pecado. Frustrar-se não é falha. Sentir não é erro.
Há um murmúrio subterrâneo, ancestral, que ressoa nas entranhas da cultura ocidental: “Você é culpado”. Não se sabe bem de quê, mas sabe-se que é. Está no corpo que se envergonha, no desejo que se reprime, na palavra que se corrige antes mesmo de ser dita. Está no prazer que se pede desculpa por sentir, na conquista que se sabota, na alegria que se desconfia. É um mal-estar estrutural, difuso e persistente. E por mais que se declare o fim da era das grandes religiões, a culpa cristã — como discurso simbólico, como código afetivo, como gramática do sofrimento — continua a operar como um motor silencioso da subjetividade moderna.
A psicanálise reconheceu desde cedo o papel constitutivo da culpa. Freud, em O Mal-Estar na Civilização, aponta que o preço da vida em sociedade é a renúncia pulsional — e que essa renúncia gera culpa. O sujeito civilizado é, por definição, um culpado crônico. Mas no Ocidente cristão, essa culpa foi além da renúncia: ela se converteu em fundamento. Se na Grécia antiga a tragédia se resolvia no destino, no cristianismo a tragédia se desloca para o íntimo. Não é o erro que condena — é o desejo. E a salvação só é possível por meio do sofrimento, da expiação, do arrependimento. O corpo vira pecado, o prazer vira tentação, a subjetividade vira campo de batalha moral.
É nesse caldo simbólico que nasce a neurose ocidental. Como aponta Julia Kristeva, em Poderes da Periferia, o cristianismo estruturou um sujeito devedor — alguém que nasce em dívida com um Pai ausente, que tudo vê, tudo exige, mas cujo amor é sempre condicionado à confissão, à renúncia, à submissão. Esse sujeito carrega a culpa como se fosse um sobrenome. E mesmo quando se declara “laico”, “livre”, “moderno”, continua organizando sua vida em torno de uma matriz sacrificial. Trabalha até adoecer, ama até se anular, sofre como quem presta contas.
A culpa cristã é tão eficaz porque é silenciosa. Ela não precisa mais do púlpito. Ela vive nos discursos de produtividade (“seja melhor”, “supere-se”, “culpe-se por não ter feito mais”), nas terapias que prometem “cura” para todo tipo de sofrimento, nas redes sociais que expõem e julgam com a fúria de um tribunal moralista. O discurso da superação pessoal é, muitas vezes, apenas a culpa cristã reembalada com design minimalista. Como bem sugere Byung-Chul Han, o sujeito contemporâneo não precisa mais ser oprimido — ele se explora com prazer. E o faz em nome de um ideal que continua sendo, no fundo, religioso: o ideal de pureza, redenção, elevação.
Não é coincidência que tantas práticas espirituais contemporâneas, mesmo fora da moldura cristã, reproduzam estruturas de culpa e purificação. Fala-se em “limpar energias negativas”, “desintoxicar a mente”, “reparar karma” — como se o sujeito estivesse sempre sujo, sempre em dívida, sempre em falta. Até mesmo o autocuidado virou forma de penitência: é preciso meditar, comer limpo, pensar positivo, performar equilíbrio. A culpa cristã foi secularizada. Ela já não precisa do pecado original — basta o fracasso em cumprir a cartilha do bem-estar.
A neurose coletiva do Ocidente, portanto, é a neurose de um sujeito que nunca se perdoa. Que nunca se sente suficiente. Que internalizou um juiz invisível, uma instância de vigilância moral, que o castiga por ser humano. E é exatamente isso que Lacan nomeia como o supereu moderno: uma voz que não apenas proíbe, mas ordena gozar. O paradoxo é brutal: o mesmo sistema que manda gozar é o que nos culpa por cada gozo. Goze, mas com culpa. Deseje, mas se arrependa. Sinta, mas se controle. A lógica do ressentimento é perfeita: ela alimenta o sistema com sujeitos eternamente insatisfeitos, eternamente em busca de perdão — seja da sociedade, de Deus, do outro ou de si mesmo.
Essa culpa, estruturante e transgeracional, é também um dispositivo político. Povos culpados não se revoltam. Sujeitos culpados não exigem — se desculpam. A culpa desmobiliza. Ela opera como anestesia crítica. Como armadilha de consciência. Como disciplina emocional. E ela está em todos os lugares: no discurso do coach, na política punitivista, nas religiões que prometem cura, nos influencers da “vida perfeita”, nas narrativas de sucesso que ocultam a violência da trajetória. A culpa se mascara de ética. Mas é apenas controle.
É urgente, portanto, interrogar esse afeto. Não para negá-lo, mas para deslocá-lo. Porque nem toda culpa é sinal de consciência. Muitas vezes, é apenas herança. Herança de um modelo de subjetividade que nos quer conformados, servis, domesticados. Herança de uma moral que premia o sofrimento e castiga o prazer. Herança de um discurso que transformou o amor em contrato, o erro em pecado, e a vida em dívida.
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