A dor de ser pouco notado num mundo de holofotes
Talvez o desafio mais urgente seja este: reconstruir o valor daquilo que não aparece. Amar o que não viraliza. Cultivar relações que não se publicam. Confiar na presença que não precisa de aplauso.
Há uma ferida silenciosa que atravessa o sujeito contemporâneo: a sensação de ser invisível. Não a invisibilidade literal — afinal, todos têm um CPF, uma conta digital, um endereço IP. Mas uma invisibilidade existencial, afetiva, simbólica. Um tipo de anonimato interno que não se resolve com curtidas, mas também não se sustenta sem elas. No mundo dos holofotes, onde o valor de alguém parece estar diretamente proporcional à sua visibilidade pública, ser pouco notado dói como se fosse prova de invalidez ontológica. Como se a vida só fizesse sentido se projetada, narrada, assistida. Como se não haver plateia fosse o mesmo que não haver vida.
Essa dor — difusa, abafada, às vezes envergonhada — se expressa em formas sutis: o silêncio dos stories, a ausência de convites, o rastro frio dos grupos de mensagens onde ninguém pergunta como você está. Não é a solidão clássica de quem está sem companhia. É a solidão deformada de quem se sente desinteressante demais para ser percebido. E é uma dor que cresce proporcionalmente ao barulho dos outros. Porque a lógica do mundo atual não é apenas a do ser — é a do aparecer. A existência virou espetáculo. E o sujeito, seu próprio produtor, curador e audiência.
Como bem disse Guy Debord, “toda a vida das sociedades nas quais reinam as condições modernas de produção se apresenta como uma imensa acumulação de espetáculos”. E no espetáculo contemporâneo, o anonimato não é apenas ausência — é quase um erro de sistema. O não aparecimento passou a significar falência subjetiva. O sujeito que não atrai atenção é tomado por fracassado, irrelevante, dispensável. A era do marketing pessoal transformou a identidade em produto. E todo produto precisa ser exibido, desejado, comentado. Quem não é notado, não entra no jogo. E quem não entra no jogo, sente que deixou de existir.
A psicanálise, com sua escuta atenta às sobras, já nos ensinava: o sujeito não é aquilo que mostra — é aquilo que escapa. Mas o mundo das redes não tolera o que escapa. Ele exige legibilidade. Ele exige presença contínua. Ele exige que você seja “alguém”. E não basta ser — é preciso provar. Mostrar. Registrar. Receber retorno. O “visto por” virou medida de existência. A subjetividade, hoje, é cronometrada por métricas de engajamento.
Nesse cenário, a dor de ser pouco notado não é um capricho. É uma forma de sofrimento radicalmente moderna. Uma dor que mistura desamparo primário (o bebê que chora para chamar a mãe) com inadequação neoliberal (o adulto que se vê como empresa falida). É Winnicott em colapso com o algoritmo. A ausência de reconhecimento simbólico não dói apenas porque falta o olhar do outro — dói porque o próprio sujeito começa a duvidar de sua existência. A lógica é cruel: se ninguém comenta, será que existi? Se ninguém reagiu, será que sou real?
A subjetividade digital, como apontam autores como Sherry Turkle e Byung-Chul Han, é moldada por filtros — mas também por carências. O narcisismo contemporâneo não é expressão de grandiosidade, mas de insegurança profunda. O exibicionismo é apenas a casca da angústia. E o desejo de ser visto é, em muitos casos, o desejo de ser validado. Não é vaidade. É medo. Medo de passar despercebido. Medo de ser irrelevante. Medo de não deixar rastro. A dor de ser pouco notado é a dor de não fazer parte da narrativa coletiva. E isso fere não apenas o ego — fere a constituição do eu.
Freud já nos advertia que o narcisismo primário é o ponto de partida do sujeito: o bebê se vê como centro do mundo, até que o outro lhe diga que não. O mundo digital faz o movimento inverso: devolve ao sujeito uma ilusão de centralidade que nunca se sustenta. Cada curtida é um sopro no ego. Cada indiferença, uma rachadura. E assim o ciclo se repete: o sujeito se expõe para ser visto, mas nunca o suficiente. Porque o desejo de ser notado é, na verdade, desejo de reconhecimento. Desejo de ser inscrito no mundo. De ter um lugar no olhar do outro.
Mas nesse mundo onde todos gritam por atenção, quem escuta? Quem sustenta o silêncio? Quem oferece um olhar que não seja de consumo? A crise não está apenas em não ser notado — está em não haver mais espaço para encontros que não estejam mediados por métricas. O outro virou audiência. O afeto virou algoritmo. A presença virou notificação.
E é nesse ponto que a dor se radicaliza. Porque o sujeito que não performa sua presença começa a se sentir culpado. Como se a invisibilidade fosse culpa sua. Como se tivesse falhado em ser interessante, bonito, produtivo, espirituoso. O mundo dos holofotes faz com que cada sombra pareça um erro. E não há nada mais violento do que a sensação de ser erro em um mundo que celebra luz o tempo todo.
Mas talvez haja uma potência no não-ser-notado. Um poder subterrâneo em não ser capturável. Talvez o que mais nos humanize não seja o brilho, mas a margem. Não a viralização, mas o silêncio compartilhado. Não a exposição, mas a intimidade que não se fotografa. Talvez seja preciso reaprender a ser sem legenda, existir sem cliques, respirar sem ser medido. Reivindicar a opacidade. Sustentar o anonimato como forma de liberdade. Porque ser pouco notado pode ser também ser menos colonizado. Menos adestrado. Menos encaixado. Mais inteiro.
A dor de ser pouco notado é real. E não deve ser ridicularizada. Mas ela também pode ser o sintoma de que estamos esperando demais de um mundo que nos oferece de menos. Um mundo que nos quer visíveis, mas não nos quer inteiros. Que nos quer presentes, mas apenas no feed. Que nos quer vivos, desde que performando.
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