A formação machista do humor
Rimos do que não sabíamos nomear — e aprendemos que machucar era engraçado
Durante décadas, o humor popular foi construído como um campo de validação simbólica da violência. Ríamos das mulheres histéricas, dos homens afeminados, dos pobres atrapalhados, dos corpos desviantes, das pessoas não brancas tentando “se encaixar”. O riso — essa reação aparentemente leve e inofensiva — se transformou em arma cultural. E crescemos gargalhando da dor dos outros.
Zorra Total, Escolinha do Professor Raimundo, Pânico na TV, Casseta & Planeta, A Praça É Nossa, Os Trapalhões — cada um à sua maneira ensinou ao público que certos corpos estavam ali para ser escarnecidos, domesticados ou hipersexualizados. Mulheres eram burras, interesseiras, ciumentas ou siliconadas. Homens gays eram caricaturas. Pessoas negras falavam “errado”. Gente pobre era ridícula. Gente gorda era piada pronta. E o público ria. Porque ninguém queria ser o alvo — então era melhor rir junto.
Freud, em O Chiste e sua Relação com o Inconsciente, já havia mostrado que o humor revela o que o superego censura. O riso, nesse contexto, é um colapso da repressão. Quando uma piada é contada, algo recalcado escapa — e ganha permissão para circular. Por isso, não há humor inocente: toda piada tem endereço. E durante décadas, os endereços foram sempre os mesmos.
O humor machista — mais do que um estilo — foi uma pedagogia emocional. Ele ensinou homens a temer o feminino dentro de si. A esconder sua fragilidade. A reafirmar a virilidade como escudo. Ensinou mulheres a se autoparodiar para serem aceitas. A rir da própria dor antes que os outros o fizessem. O riso foi o anestésico social para feridas profundas demais para serem ditas.
Ao mesmo tempo, o humor foi o álibi da crueldade. Sempre que se denunciava o preconceito, a resposta vinha pronta: é só brincadeira. Esse “só” é uma violência simbólica. Porque normaliza o inaceitável. Ensina que o limite do outro não importa se todos estão se divertindo. O humor, assim, tornou-se um espaço de suspensão ética. Uma zona de impunidade simbólica.
Essa formação afetiva moldou toda uma geração. Quantos adolescentes aprenderam que ser engraçado era a única forma de pertencer? Quantos riram dos outros para evitar serem alvos? Quantos se feriram calados enquanto todos riam? O bullying, muitas vezes, é apenas o humor institucionalizado no recreio.
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