Crianças responsáveis demais: a infância negada virou currículo
Os adultos de hoje que foram pequenos conselheiros, cuidadores e protetores — e cresceram acreditando que ser amado era o mesmo que ser útil
Algumas crianças não foram exatamente crianças. Tiveram corpo de oito, nove, dez anos — mas alma de gente grande. Aprenderam cedo a arrumar a casa, cuidar do irmão menor, escutar os pais discutindo e fingir que não estavam ouvindo. Crianças que sabiam o preço do arroz, que sabiam mentir para o vizinho que bateu na porta, que aprendiam a ler o humor da casa antes de perguntar qualquer coisa.
Essas crianças se tornaram adultas antes do tempo. Não por vocação precoce, mas por omissão do mundo. Foram convocadas a amadurecer porque ninguém as protegeu do que não deviam ver. Não tiveram o direito ao desamparo. Tiveram que ser fortes para que os outros pudessem ser fracos. E, ao fazer isso, perderam algo que ninguém devolve: a experiência de ser cuidado sem precisar merecer.
Na clínica psicanalítica, esse fenômeno aparece com frequência: adultos hiper responsáveis, ansiosos, que cuidam de todos, resolvem tudo, se colocam sempre como os mais maduros da sala — mas, por dentro, exaustos. Não sabem pedir ajuda. Sentem culpa por descansar. Confundem amor com obrigação. E, no fundo, esperam que alguém, um dia, os olhe e diga: “agora é sua vez de ser cuidado.”
Winnicott chamaria isso de falso self: uma adaptação tão perfeita às expectativas do ambiente que o sujeito esquece quem é. Porque a criança que aprendeu a ser elogiada por ser prestativa, inteligente, “madura para a idade”, raramente teve espaço para o erro, para o choro, para a regressão. Ela entendeu que amor vinha junto com utilidade. E que, para ser digna de afeto, precisava continuar sendo funcional.
O que era sobrevivência virou identidade. Cresceram sendo os amigos conselheiros, os parceiros que escutam tudo, os colegas confiáveis, os funcionários perfeitos. E, aos poucos, foram substituindo o desejo por tarefas. A espontaneidade por planilhas. O medo por performance. O afeto por entrega. E o pior: foram admirados por isso. Aplaudidos. Promovidos. Mas profundamente solitários.
Muitos não lembram de sua infância. Ou lembram como se fosse um campo de responsabilidades: “eu que fazia o café da minha mãe”, “eu que cuidava do meu irmão”, “eu que segurava meu pai quando ele bebia demais”. Suas memórias não são lúdicas — são logísticas. Porque não houve tempo para brincar, errar, cair. Estavam ocupados demais garantindo que tudo não desmoronasse.
E hoje, mesmo quando tudo está relativamente bem, seguem no modo de alerta. Não sabem confiar. Não relaxam. Dormem pouco. E, quando finalmente têm um espaço de afeto legítimo, sentem que não sabem receber. Que estão em dívida. Que amar é dar mais do que recebem. Porque nunca lhes ensinaram que o amor também pode ser repouso.
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