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Estar apaixonado por alguém que não conhecemos

A paixão é uma estrutura, não uma fase. Pode durar horas ou décadas, e nada garante que o conhecimento do outro a dissolva. Muitas vezes, conhecer o outro é apenas recalcular a rota da fantasia.

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abr 15, 2025
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A paixão, diferentemente do amor, não exige convivência, nem conhecimento, nem realidade. Apaixonar-se é, antes de tudo, um exercício de projeção — uma experiência psíquica na qual o outro funciona como tela sobre a qual projetamos nossas faltas, ideais e fantasmas mais íntimos. O que nos apaixona, em última instância, não é o outro em sua alteridade, mas o significante que ele representa para nosso inconsciente.

Freud já havia apontado, em Sobre o Narcisismo: uma Introdução (1914), que a escolha de objeto amoroso se dá frequentemente por duas vias: a via do “tipo narcisista” (amar aquilo que somos ou fomos) e a via do “tipo de objeto” (amar aquilo que gostaríamos de ter sido). Em ambos os casos, o outro é apenas uma peça do nosso próprio quebra-cabeça identitário. Quando nos apaixonamos por alguém que não conhecemos, estamos menos diante de um encontro com o outro, e mais diante de uma reedição do nosso mito individual de origem.

É importante distinguir amor e paixão. Enquanto o amor exige elaboração simbólica, negociação com a realidade, sustento da diferença e da convivência, a paixão se move na lógica da fantasia. Lacan define a paixão como uma "afecção do ser"; uma perturbação que se inscreve no campo do gozo, não do desejo articulado. Ela não exige que o outro seja real: basta que ele encarne um ponto de captura de nossa economia libidinal. Assim, nos apaixonamos não pelo que o outro é, mas pelo que ele nos faz ser — ou pelo que achamos que poderíamos ser a partir dele.

Nesse sentido, a paixão é uma estrutura, não uma fase. Pode durar horas ou décadas, e nada garante que o conhecimento do outro a dissolva. Muitas vezes, conhecer o outro é apenas recalcular a rota da fantasia. Mudamos a forma, adaptamos a história, adicionamos novas cenas. O que permanece é a estrutura de investimento libidinal, que nos liga ao outro por caminhos que não passam pela realidade, mas pela linguagem do inconsciente.

A clínica nos mostra isso: há sujeitos que se apaixonam por figuras públicas, desconhecidos da internet, amigos de infância que jamais foram reencontrados, passageiros do metrô. A intensidade da paixão não está ligada ao grau de intimidade, mas ao poder de evocação simbólica que o outro exerce. O sujeito amado torna-se uma espécie de "objeto transicional", na acepção winnicottiana: uma ponte entre o mundo interno e o externo. Ele ocupa um lugar de mediação entre o que falta e o que desejamos ser.

Slavoj Žižek, com sua habitual ironia, afirma que a paixão é uma forma de misrecognition — um erro produtivo de reconhecimento. Não vemos o outro como ele é, mas como ele deve ser para sustentar nossa fantasia. E, mais ainda, a paixão é eficaz na medida em que mantém o outro desconhecido. Conhecer demais pode quebrar o feitiço. A paixão exige certo grau de distância, de opacidade, de idealização. É por isso que tantos sujeitos resistem a transformar a paixão em convivência: temem descobrir que o outro não sustenta o fantasma.

Nesse ponto, é inevitável a referência a Platão, em O Banquete. Ali, o amor aparece como busca do Belo, do Bem, do Eterno — e o objeto amado, muitas vezes, é apenas uma escada para alcançar um ideal. A paixão por alguém que não conhecemos é essa escada que preferimos não subir: ficamos na base, admirando sua estrutura, evitando descobrir que, no topo, não há mais do que o abismo da alteridade.

Mas a pergunta que se impõe é: por que precisamos nos apaixonar por quem não conhecemos? O que há nessa experiência de estranhamento e projeção que tanto nos atrai? Talvez a resposta esteja no próprio funcionamento do desejo. Lacan nos lembra que o desejo é sempre desejo do desejo do Outro. Apaixonar-se, então, é um modo de se interrogar: o que o Outro deseja de mim? O outro desconhecido é aquele que não nos nega ainda, que não nos devolve um olhar de desinteresse ou de excesso de familiaridade. Ele mantém aberto o campo do enigma.

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