Lisa Simpson e a dor de saber: a tragédia da consciência em tempos de mediocridade
Como toda figura verdadeiramente trágica, Lisa não oferece saída fácil. Ela encarna o impasse: entre saber e agir, entre consciência e impotência, entre lucidez e solidão.
Há algo de profundamente comovente — e perturbador — na solidão de Lisa Simpson. Não a solidão dos desajustados por falta de afeto ou por excentricidade caricatural, como é frequente nas representações televisivas, mas uma solidão ética, epistemológica e estrutural. Lisa não está só porque quer, nem apenas porque os outros a excluem. Está só porque carrega a dor de enxergar demais num mundo que prefere as sombras — e a ignora por isso.
A figura de Lisa, ainda que animada e construída dentro dos limites da sátira, condensa de forma precisa o drama do sujeito atravessado pela consciência crítica em uma sociedade que transformou a ignorância em virtude. Lisa é a criança que leu Marx antes de entender a conta de luz. Que se emociona com Simone de Beauvoir enquanto seus colegas aprendem a fazer caretas. Que chora ouvindo Miles Davis enquanto a cidade festeja mais uma eleição medíocre. Uma tragicômica Cassandra que, mesmo prevendo o colapso, é ridicularizada por dizê-lo em voz alta.
O sofrimento de Lisa se apresenta como uma espécie de excesso — não apenas de conhecimento, mas de implicação. Ela não apenas vê o que os outros não veem; ela se importa. Ela tenta. E é justamente aí que se inscreve o seu drama: saber demais e, ainda assim, ser impotente para transformar aquilo que se sabe. A paixão de Lisa pela justiça, pela ciência, pela razão, não a emancipa: a isola. É o custo do pensamento em um mundo que premia a alienação.
Freud, se a escutasse no divã, talvez localizasse ali um superego severo demais, uma instância moral que excede em muito o necessário para a vida em sociedade. Mas não é apenas isso. Lisa não sofre só de culpa, como aqueles atravessados pelo interdito paterno. Ela sofre de lucidez. E a lucidez, como sabemos desde Schopenhauer, é um fardo. Quem enxerga o todo não consegue mais rir das partes. Quem compreende as engrenagens não consegue mais acreditar na encenação.
Lacan, por sua vez, talvez apontasse para a posição estrutural de Lisa como sujeito barrado. Seu saber não se encaixa no discurso dominante — o da comédia, o da estupidez generalizada, o do consumo acrítico. Lisa circula como exceção. E como toda exceção, ameaça. Sua presença, ainda que infantil, desloca o gozo dos outros, que preferem a ignorância à inquietação. O saber que Lisa representa não é apenas conteúdo intelectual — é o saber do desejo que falta, o saber que perturba porque não fecha, porque denuncia o sem-sentido que sustenta a ordem.
Na tradição da filosofia política, poderíamos pensar Lisa à luz do “desencantamento do mundo” proposto por Max Weber. O desencanto moderno — essa perda da magia, da religiosidade, da ilusão coletiva — não traz alívio. Traz vazio. Lisa vê esse vazio, tenta preenchê-lo com ciência, arte, ética, e é ridicularizada por isso. Seu irmão Bart, ao contrário, encarna a antiética do mundo contemporâneo: a esperteza cínica, o prazer sem culpa, a infantilização permanente. Bart se diverte; Lisa sofre. Mas é um sofrimento sem grandeza, sem recompensa — porque não há catarse nem redenção para quem carrega o peso do saber no mundo da idiotia celebrada.
Antonio Gramsci nos ajuda a entender esse processo de neutralização do pensamento pela via da hegemonia cultural. O sistema, para se manter, não precisa eliminar seus críticos. Basta ridicularizá-los. Torná-los “chatos”, deslocados, excessivos. Lisa é tudo isso. Não por defeito próprio, mas porque sua inteligência desorganiza a ordem do conformismo. E o conformismo, sabemos, é sempre protegido pela ideologia do senso comum.
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