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O fim que não ousa dizer seu nome: sobre a dificuldade de encerrar amizades femininas

O fim que não ousa dizer seu nome: sobre a dificuldade de encerrar amizades femininas

A psicanálise nos lembra que o sujeito está sempre em processo. E os vínculos precisam acompanhar esse movimento — ou se transformar em cárcere simbólico.

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abr 15, 2025
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O fim que não ousa dizer seu nome: sobre a dificuldade de encerrar amizades femininas
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Há algo de profundamente silencioso — e por isso mesmo devastador — na dissolução das amizades. Diferentemente do rompimento amoroso, que conta com um repertório narrativo, jurídico e simbólico que o legitima (o término, a briga, o luto, o “ficar amigo depois”), as amizades raramente têm um fim declarado. Elas desaparecem como o calor de uma xícara esquecida: aos poucos, por desuso, por falta de palavras, por medo de confronto.

Entre mulheres, essa dificuldade ganha contornos ainda mais complexos. Em uma sociedade que historicamente fragilizou as alianças femininas, colocando-as como acessórias, cíclicas ou utilitárias, construir uma amizade entre mulheres é um gesto político. Mas nem todo gesto político está isento de contradições, e talvez uma das mais incômodas seja esta: o tabu de encerrar uma amizade feminina quando ela já não faz mais sentido.

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I. A amizade como aliança emocional e pacto de lealdade

A amizade entre mulheres ocupa, muitas vezes, um lugar de acolhimento radical: é nela que se compartilham dores que não cabem nas relações familiares ou amorosas; é ali que se constrói um idioma afetivo livre das hierarquias tradicionais. Essa amizade pode ser uma forma de resistência simbólica à lógica patriarcal do isolamento emocional.

No entanto, como nos lembra a psicanálise, não existe vínculo humano isento de ambivalência. A amizade, como qualquer laço, se constitui por projeções, idealizações e identificações. E o que é inicialmente uma afinidade pode se transformar, com o tempo, em obrigação emocional, fidelidade performativa ou culpa partilhada.

A amizade começa como escolha, mas pode se converter em função.

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II. Quando o afeto se transforma em inércia

Em muitos casos, o vínculo permanece por hábito, por memória ou pela ideia de que “ela esteve comigo nos piores momentos”. E de fato esteve. Mas estar junto no passado não implica necessidade de permanência no presente. O problema é que o discurso social sobre a amizade, sobretudo a feminina, é excessivamente moralizado. Ele impõe que amigas “de verdade” devem durar para sempre, como se o tempo fosse a prova da profundidade — e não do desgaste.

Essa exigência produz um paradoxo cruel: quando a amizade se torna fonte de angústia, esvaziamento ou ressentimento, o sujeito se sente culpado por querer se afastar. E, ao não poder nomear o fim, entra em um circuito de atuação inconsciente: responde com frieza, cancela encontros, evita conversas mais íntimas, mas não rompe. A amizade segue, mas esvaziada. O vínculo se mantém, mas sob o custo da autenticidade.

Como dizemos na clínica, o sintoma substitui a fala.

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III. A impossibilidade do luto simbólico

Por que não sabemos terminar amizades?

Porque não temos rituais simbólicos para isso. Não existe a “conversa do fim”, a ruptura formal, o “cada um segue seu caminho”. E essa ausência de simbolização torna o afastamento um campo fértil para culpa, mágoa e fantasmas afetivos.

A amiga que permanece “apenas” nas redes sociais, que continua sendo convidada por protocolo, que aparece em aniversários mas não mais na intimidade — essa figura se torna um espectro relacional: não está, mas também não foi. E o espaço psíquico que ela ocupa não pode ser reorganizado, pois sua ausência não foi reconhecida.

A psicanálise diria que há aí uma impossibilidade de luto: não se pode elaborar o fim de algo que não foi reconhecido como fim.

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IV. A pressão da sororidade mal interpretada

Em tempos de discursos feministas popularizados, a ideia de sororidade passou a ocupar um lugar normativo: é preciso manter-se unida, apoiar-se mutuamente, não romper laços entre mulheres. Essa ética é fundamental — sobretudo como forma de combater rivalidades impostas por estruturas patriarcais.

No entanto, a sororidade não pode ser confundida com ausência de conflito, com permanência compulsória ou com cancelamento da singularidade. Uma amizade pode ter sido importante, necessária, bela — e ainda assim ter se esgotado. A ética do cuidado exige, antes de tudo, cuidado com o próprio desejo. E manter vínculos que adoecem em nome de um ideal coletivo é trair tanto a si quanto ao outro.

Como bem diria Winnicott, o gesto ético está em sustentar a verdade da experiência — não em performar um afeto idealizado.

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V. O pacto do fingimento: manter-se amiga como defesa

Quando não se pode dizer que não se quer mais estar junto, o sujeito entra num modo de simulação relacional. Finge-se afeto, reciprocidade, presença. Mas tudo opera no automático. A conversa é factual, os elogios são protocolares, as lembranças são recicladas. E, por trás disso, há uma solidão profunda: a de não poder sair de um laço que já não se deseja, mas que também não se pode nomear.

A amizade, que deveria ser espaço de escuta e transformação, se converte em palco. E o afeto, que deveria ser gesto, vira encenação.

A clínica nos ensina que onde não há palavra, há atuação. O silêncio, o sarcasmo, a ausência — tudo comunica. Mas sem mediação simbólica, tudo fere.

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