Quando não nos reconhecemos mais: a perda da identidade como sinal de transição
E se o verdadeiro sintoma fosse se reconhecer demais, por tempo demais, em um Eu que já deveria ter morrido?
Há momentos em que o espelho se transforma num abismo. A imagem refletida devolve não mais um rosto familiar, mas um outro, estrangeiro, que ainda assim nos habita. Nesse instante sutil e devastador, compreendemos que algo se deslocou de forma irreversível: não estamos mais onde antes estávamos — e, o mais inquietante, é que tampouco sabemos onde agora nos encontramos. A identidade, esse alicerce frágil que tentamos sustentar com narrativas biográficas, escolhas repetidas e papéis sociais, escorre por entre os dedos como um líquido denso, viscoso, difícil de nomear. Não é exatamente perda. É uma transição que não pediu licença, um intervalo entre versões de si, como se uma existência estivesse sendo desinstalada enquanto a outra, ainda em fase de download, não tivesse sido completamente baixada.
Nesse vácuo simbólico, em que já não somos quem éramos, mas ainda não somos quem seremos, instala-se o terror do não reconhecimento — uma vertigem ontológica. A psicanálise não hesita em reconhecer nesse fenômeno uma espécie de entre-lugar do sujeito: um momento de abertura radical ao real, onde o Eu, ao perder suas referências imaginárias, fica exposto ao desamparo estrutural de sua constituição. Freud já nos alertava sobre o caráter ficcional do Eu como sede da consciência; para ele, o sujeito é, em grande medida, inconsciente de si, e o que chamamos de identidade nada mais é do que um arranjo provisório entre as forças do desejo, da pulsão e da censura.
Lacan, por sua vez, amplia essa tensão ao lembrar que o sujeito é sempre um efeito da linguagem: um ser dividido entre o que diz e o que escapa ao dito, entre o nome que o convoca e o gozo que o escapa. Quando não nos reconhecemos mais, talvez seja porque deixamos de sustentar o personagem para o qual a linguagem social — o Outro — nos chamou. E isso pode ser tanto uma queda quanto uma chance de reelaboração. Um sujeito que não se reconhece é um sujeito às voltas com o desejo de não mais sustentar uma ficção esgotada.
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