Quando o Amor Adoece: por que algumas relações não suportam a melhora do outro
É possível que um gesto de autocuidado se torne um ataque? Que a decisão de se escutar, enfim, soe como uma traição a quem antes nos ofereceu colo? Há vínculos que se nutrem da doença do outro como se ela fosse a condição do afeto — e há laços tão bem amarrados à dor que o simples ato de sarar ameaça o contrato simbólico que os sustenta. Amor não é sempre cuidado, e cuidado não é sempre amor. Às vezes, o que se chama afeto é só uma simbiose de feridas.
O que dizer das relações que colapsam assim que um dos lados começa a florescer? Quando a melhora psíquica, emocional ou até financeira de um sujeito coincide com o esfriamento ou sabotagem da relação, algo que parecia amoroso revela sua estrutura dependente. Não se trata de acusar o outro, mas de questionar: o que eu representava enquanto estava mal? Que lugar simbólico minha dor ocupava na vida de quem dizia me amar?
Este ensaio é sobre a patologia dos vínculos que se organizam em torno da doença do outro. Laços que só sobrevivem enquanto houver ferida aberta, tristeza crônica ou fracasso recorrente. A travessia psíquica rumo à saúde passa, nesses casos, por um preço afetivo altíssimo: a perda de um amor que, no fundo, não suportava a melhora.
Na clínica, é frequente notar: pacientes que, ao começarem a se reorganizar subjetivamente, enfrentam resistências não só internas, mas externas. “Meu parceiro diz que estou diferente.” “Minha mãe ficou agressiva desde que parei de chorar.” “Meus amigos dizem que virei egoísta depois da terapia.” O que essas frases revelam não é apenas a dificuldade de adaptar-se à mudança, mas o luto do outro pelo colapso de uma identidade funcional: a de alguém que servia ao narcisismo alheio justamente por estar quebrado.
Segundo Lacan, o amor é dar o que não se tem a alguém que não o quer. Mas há amores que se estruturam como a promessa de reparação do outro. O sujeito ferido se torna o depositário do gozo do parceiro: ele encarna o lugar da falta, do cuidado compulsivo, da razão de ser do outro. A lógica é perversa — e não no sentido moral, mas estrutural: a dor de um sustenta o narcisismo do outro. É como se disséssemos inconscientemente: “Enquanto você estiver doente, eu sou necessário.”
Isso não significa que haja crueldade deliberada. Na maioria das vezes, trata-se de uma aliança inconsciente entre carência e controle. O parceiro cuidador pode genuinamente acreditar que está sendo amoroso. Mas seu cuidado não suporta a emancipação do outro. Ele oferece colo, mas exige permanência. E o doente, ao sarar, precisa escolher entre o amor e a autonomia.
O filósofo Emmanuel Levinas propôs uma ética do rosto: o outro me convoca antes mesmo de eu desejá-lo. Há, nessa ética, uma beleza radical — mas também uma armadilha. Quando o outro me convoca apenas como sofredor, minha existência se estreita. Torno-me apenas função. Meu rosto só tem valor enquanto expressa dor. A ética vira servidão.
Winnicott, ao pensar o cuidado materno suficientemente bom, lembra que amar também é suportar a separação. Permitir que o outro exista sem mim. Mas em muitos vínculos adultos, o amor se infantiliza: quer exclusividade, dependência, fusão. A melhora do outro, nesses casos, simboliza abandono.
E aqui entra o ponto mais delicado: o sujeito que melhora também pode sentir culpa. Culpa por sair da posição de frágil. Culpa por não precisar mais. Culpa por deixar para trás o pacto implícito que dizia: “Eu te dou minha dor, você me dá sentido.” E se esse pacto for rompido, ambos entram em crise. O cuidador se sente rejeitado. O cuidado se transforma em cobrança. E o antigo paciente passa a se sabotar para não perder o vínculo. Sarar, então, passa a doer.
Como sair desse enrosco?
Antes de tudo, é preciso despatologizar o desejo de cura. Há quem internalize tanto o lugar da vítima que transforma a melhora em traição a si mesmo. Como se estar bem significasse renegar tudo o que viveu. Mas sarar não é esquecer. É integrar. E, às vezes, integrar exige afastar-se de quem só sabia lidar com a nossa dor.
Eis um pequeno roteiro reflexivo para lidar com vínculos que não suportam sua melhora:
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